Afinal, o que está acontecendo?
“Não vamos desistir”. Essa foi a frase de Luiza Helena Trajano, Presidente do Conselho de Administração da Magazine Luiza, em respostas aos ataques a um comunicado da empresa. O anúncio, realizado no dia 18 de setembro de 2020, refere-se à criação de um processo seletivo de trainees, voltados exclusivamente para pessoas negras.
Frederico Trajano, filho de Luiza Helena e atual CEO da empresa, em uma nota para o Brazil Journal intitulada “Por que criamos um programa de liderança só para negros”, disse que a Magazine Luiza nasceu para incluir. Segundo ele, a motivação da criação do programa veio do fato de que, apesar de metade dos colaboradores da empresa serem negros, eles ocupam apenas 16% dos cargos de liderança.
A Magalu percebeu que, para mudar esse cenário, era preciso mudar a forma com que recrutavam as pessoas, principalmente os trainees – ao longo dos últimos anos, a empresa formou cerca de 250 trainees e apenas 10 eram negros. Processos seletivos exclusivos para pessoas negras cria oportunidades para essa parcela da população que, geralmente, não está em cargos altos ou possui realidades sociais, econômicas e escolares que não se encaixam nos requisitos pedidos pelas organizações para ingresso no mercado de trabalho e desenvolvimento de carreira.
Mas, apesar do propósito de inclusão racial, a hashtag #MagazineLuizaRacista tomou destaque no Twitter e foi um dos assuntos mais comentados durante dias.
E por que isso incomoda tanto?
O caso gerou controvérsia na internet e despertou acusações de que o processo seletivo discrimina os próprios candidatos e promove a segregação racial. No Twitter e Instagram, principalmente, foram grandes as menções ao termo “racismo reverso”. Mas já sabemos que esse termo parte de uma afirmação falsa sobre o racismo. Você pode ler mais sobre esse conceito nesse artigo do Alma Preta.
Como diz a autora e filósofa Djamila Ribeiro, o “racismo é um sistema de opressão e, para haver racismo, deve haver relações de poder. Negros não possuem poder institucional para serem racistas”. Quando se fala de racismo reverso, parte-se da ideia de que o grupo desfavorecido está oprimindo seu opressor. Os negros, no caso do Brasil, passaram por mais de 300 anos de escravidão, fazendo parte de um dos últimos países a aboli-la, e certamente não teriam a mesma força que seu opressor. O mesmo vale para os indígenas.
A iniciativa da Magalu incomoda algumas pessoas porque mexe em uma marca desse passado que permanece até hoje na sociedade brasileira: o racismo estrutural. Esse conceito é usado para explicar que a estrutura da sociedade é, essencialmente, racista, fazendo com que o racismo esteja presente nas nossas relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares. Na prática, o racismo está presente no nosso cotidiano e muitas vezes de maneiras quase imperceptíveis, como, por exemplo: quando vemos que negros (mesmo quando ocupam os mesmos cargos) ganham 30% a menos que os brancos; ao vermos uma mídia quase 100% branca em um país de maioria negra, ou; no preconceito em relação às religiões de matriz africana; quando automaticamente um homem negro se torna sinônimo de perigo e acaba sendo vítima de violência, como aconteceu recentemente com George Floyd, nos EUA e, bem, quando uma empresa como a Magalu percebe que quase não há pessoas negras em cargos de liderança.
A Magazine Luiza, então, fez o que algumas empresas (falaremos mais de algumas delas adiante) já vêm fazendo nos últimos anos para tentar diminuir a desigualdade racial no mercado de trabalho: uma discriminação positiva.
Entenda o conceito de discriminação positiva
A discriminação positiva é um tipo de discriminação que tem como finalidade reparar situações de desigualdade, estabelecendo medidas que diminuam a desvantagem de um determinado grupo. Um processo seletivo exclusivo para pessoas negras é um exemplo de discriminação positiva.
No livro “Racismo Estrutural”, do advogado, filósofo e professor Silvio de Almeida, ele diz:
“ (…) Ainda sobre discriminação, é importante dizer que é possível falar também em discriminação positiva, definida como a possibilidade de atribuição de tratamento diferenciado a grupos historicamente discriminados, com o objetivo de corrigir desvantagens causadas pela discriminação negativa, a que causa prejuízos e desvantagens. (…) Políticas de ação afirmativa, que estabelecem tratamento discriminatório a fim de corrigir ou compensar a desigualdade são exemplos de discriminação positiva.”
No vídeo “Contratar só negros é discriminação?” de Spartakus Santiago e Ale Santos, eles falam melhor sobre esse assunto.
Discriminação positiva é legal?
No dia seguinte ao lançamento do programa de trainees da Magalu, dia 19 de setembro, um deputado federal publicou nas redes sociais dizendo que estava representando ao Ministério Público contra a empresa e pontuando o programa só para negros como um suposto crime de racismo.
Acontece que a discriminação positiva é amparada por lei. O próprio Ministério Público do Trabalho divulgou em nota pública, após a repercussão do caso Magalu, a sua posição de “reafirmar a defesa do Estado Democrático de Direto pela adoção de medidas que visem a promoção da igualdade no mercado de trabalho, enfrentamento ao racismo e promoção da igualdade racial, mediante ações afirmativas.”
Separamos alguns documentos que validam ações de discriminação em contextos de reparação histórica de desigualdades sociais:
1. O Decreto Legislativo nº 23, de 21 de junho de 1967, onde é aprovada a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial da ONU, afirma:
“Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contando que, tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.”
2. De acordo com o o artigo 39 da Lei Federal 12.288, de 20 de julho de 2010, o Estatuto da Igualdade Racial:
“O poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas.
3. Uma Nota técnica do Ministério Público do Trabalho, de 2018, reconhece a diferenciação entre discriminação positiva e discriminação negativa de forma a compreender e efetivar o direito à igualdade, não como retórica, mas como uma realidade:
“(…) necessário se faz a possibilidade de instrumentalização das ações afirmativas. E assim o é mediante a contratação específica de trabalhadores oriundos da população negra. E, para tanto, revela-se premente a possibilidade de anúncios específicos, plataformas com possibilidade de tais reservas, garantia de vagas específicas. Com efeito, a norma que prevê as ações afirmativas para a população constitui, na verdade, instrumentos para a efetivação de políticas públicas de inclusão social.”
A Magalu não está sozinha e esse é um caminho sem volta
A Magazine Luiza trouxe à tona o debate público, mas a empresa não é a única nem a primeira a investir em programas assim.
Logo após a Magalu, a empresa química e farmacêutica Bayer abriu as inscrições para um programa de trainee exclusivos para candidatos negros. Durante 18 meses, os aprovados terão uma mentoria individual com executivos, além de vivências que apoiarão na construção de carreira.
Um pouco antes, em julho, a Ambev abriu inscrições para preencher 80 vagas destinadas a estagiários negros. Conhecimento e fluência em língua inglesa não foram exigidos e, segundo a empresa, não houve exigência de conhecimento técnico prévio ou experiência profissional. Em agosto, a Accenture também ofereceu 24 vagas de estágio para universitários negros de qualquer região do Brasil.
Ainda antes, no início de 2019, o Google lançou o Next Step, um programa de estágio com 20 vagas que vai priorizar a contratação de estudantes negros. No projeto, a fluência no idioma inglês não foi exigida como um requisito mínimo de contratação.
A inclusão é um caminho só de ida. E as empresas já estão percebendo que o discurso sobre diversidade precisa vir acompanhado de medidas práticas e efetivas. Junto a Trajano, nós da Blend Edu reafirmamos: não vamos desistir.